Notícia
PIS/COFINS nos ganhos financeiros de reservas técnicas de seguradoras – um entendimento a ser revisado
A manutenção das reservas técnicas é fortemente regulamentada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda
Reforma fiscal e desregulamentação são dois temas que têm ocupado o centro do debate econômico proporcionado pelas Eleições de 2018. A simplificação tributária e a folga regulatória vêm sendo consideradas tão importantes para o arejamento da atividade empresarial e para a retomada do crescimento quanto a reforma da previdência para a sustentabilidade das aposentadorias. A situação de estrangulamento se acentuou ao ponto de atualmente existirem setores estratégicos inteiros da economia que estão sujeitos a diversos mecanismos que, de maneira injusta, “amarram” esses dois gargalos; alguns deles fazem da tributação uma imposição da própria regulamentação. “Regulamentar para tributar”, lógica duplamente onerosa que dificulta ainda mais o desfazimento do nó fiscal-regulatório brasileiro, cada vez mais górdio.
PIS/COFINS sobre os Rendimentos de Reservas Técnicas.
Um entendimento da Receita Federal ilustra bem como funciona esse mecanismo. Trata-se da incidência das contribuições PIS e COFINS sobre os ganhos financeiros oriundos das reservas / provisões técnicas cuja manutenção todas as sociedades seguradoras são obrigadas por lei.
Nos termos do art. 84 do Decreto-Lei n. 73/66, “para garantia de todas as suas obrigações, as Sociedades Seguradoras constituirão reservas técnicas, fundos especiais e provisões, de conformidade com os critérios fixados pelo CNSP, além das reservas e fundos determinados em leis especiais”.
O objetivo é de evitar um desfalque dos segurados, não há dúvidas de que estamos diante de um dever decorrente de lei, e não de uma “opção”. Trata-se de uma condição para o próprio funcionamento das seguradoras a constituição de um lastro.
Como não poderia deixar de ser, a manutenção das reservas técnicas é fortemente regulamentada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda. O CNSP recentemente editou a Resolução n° 321/2015 e a Circular n° 517/2015 a esse respeito – as quais, somadas, totalizam nada menos que 396 artigos, sem contar os inúmeros “penduricalhos” (incisos, parágrafos, alíneas, anexos, fórmulas, etc.). Os artigos 91 e 92 da Resolução merecem destaque: o primeiro contém treze (13) incisos que listam atividades e aplicações proibidas às seguradoras, e o segundo estabelece oito (8) incisos que listam vedações específicas relacionadas aos bens garantidores das reservas técnicas. Exemplos: as seguradoras não podem operar com derivativos sem garantia, nem investir no exterior (com algumas exceções), nem prestar fiança ou aval, nem aplicar em fundos de investimento administrados por pessoas físicas, etc.; quanto aos ativos garantidores das reservas técnicas, não podem ser alienados ou gravados sem autorização prévia da SUSEP, nem locados, nem oferecidos como caução ou emprestados, caso se tratem de valores mobiliários – e a lista continua.
O mesmo Ministério da Fazenda impõe essa forte regulamentação por meio do CNSP, e por meio da Receita Federal pretende a incidência do PIS e da COFINS sobre os rendimentos produzidos pelos ativos garantidores. Esse posicionamento consta de respostas a consultas formuladas por contribuintes perante o Fisco Federal. Vale a pena transcrever trechos da Solução de Consulta n. 126/2018, recentemente publicada: O Contribuinte sustentou que: “desses "Ativos Garantidores" decorre fatia de sua receita que é totalmente estranha à sua atividade operacional, percebida na forma de "Receitas Financeiras" (ou seja, não-operacionais).”.
Ao que a Receita Federal respondeu: “As receitas financeiras auferidas a partir dos “investimentos compulsórios” efetuados com vistas à formação das chamadas "reservas técnicas", em observância ao imposto pelo Decreto-Lei nº 73, de 1966, compõem a base de cálculo da Cofins em regime de apuração cumulativa. A efetivação desses investimentos normativamente compulsórios e a cotidiana administração da alocação desses recursos nas diferentes aplicações admitidas em lei consistem em atividade empresarial própria, porquanto tipificada legalmente como inerente e imperiosa ao desenvolvimento das operações que compõem o objeto social de toda e qualquer sociedade seguradora”.
Portanto, a pergunta decisiva é a seguinte: a manutenção das reservas técnicas pode ou não ser considerada como parte da “atividade ou objeto principal” das seguradoras? É fato que todas as seguradoras mantêm as reservas técnicas por força da determinação legal, mas será que essa obrigatoriedade por si só faz com que essa atividade possa ser considerada como principal, isto é, pertinente à “atividade-fim” dessas empresas – que, como sugere o próprio senso comum, se destinam a segurar e em virtude disso são remuneradas com prêmios? A resposta a essa questão determinará a incidência ou não do PIS e da COFINS sobre os rendimentos (os frutos) eventuais dessas reservas técnicas.
PIS/COFINS e As Sociedades Seguradoras
De modo geral, a extensão da base de cálculo do PIS e da COFINS experimentou idas e voltas. Houve uma tentativa de alargamento legislativo (§1º do art. 3º da Lei n° 9.718/98) dessa base, que seria a “totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada”. Esse alargamento foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive com a revogação do texto do §1º do art. 3º da Lei n° 9.718/98.
Embora longe de eliminar as discussões sobre a base de cálculo do PIS e da COFINS, que ainda são muitas e abarrotam tanto o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) quanto o Poder Judiciário, mais recentemente a Lei n. 12.973/14, alterando o art. 12 Decreto-Lei n. 1.598/77, explicitou que a “receita bruta” (base de cálculo do PIS e da COFINS) “compreende”: (I) o produto da venda de bens nas operações de conta própria; (II) o preço da prestação de serviços em geral; (III) o resultado auferido nas operações de conta alheia; e as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nos incisos I a III do art. 12 do Decreto-Lei n. 1.598/77.
Traçando um panorama geral das empresas seguradoras em relação ao PIS e à COFINS, vale lembrar que estão expressamente excluídas do regime não-cumulativo dessas contribuições, nos termos do inciso I do art. 10 da Lei n. 10.833/03 e inciso I do art. 10.865/03. Ficam sujeitas ao regime cumulativo, com algumas regras especiais, sobretudo atinentes a deduções da base de cálculo, como a prevista pelo inciso II do §6º da Lei n. 9.718/98, que permite o desconto das indenizações pagas para cobertura de sinistros.
No Poder Judiciário, interessa ao setor a definição do julgamento do Recurso Extraordinário 400.479/RJ pelo STF, em que se discute a incidência das contribuições sobre os próprios prêmios recebidos pelas seguradoras, segundo as quais dos prêmios não remunerariam nem a prestação de serviços, nem a venda de bens e produtos. O julgamento se encontra pendente de conclusão desde 2016.
Fato é que no RE 400.479/RJ está judicializada a constitucionalidade da cobrança de PIS/COFINS sobre os próprios rendimentos primários ou principais (os prêmios) auferidos pelas seguradoras, em relação aos quais os rendimentos dos bens garantidores (reservas técnicas) se apresentam nitidamente secundários ou decorrentes.
(Não) Incidência Sobre os Rendimentos de Reservas Técnicas
Quanto a estes rendimentos, é certo que não se enquadram nas hipóteses estabelecidas pela Lei n. 12.973/14 nos três primeiros incisos do art. 12 do Decreto-Lei n. 1.598/77. O que resta é responder se esses rendimentos podem ou não ser considerados como “receitas da atividade ou objeto principal” (inciso IV do mesmo art. 12) dessas empresas.
Para o Governo, a resposta é positiva: incidem o PIS e a COFINS sobre esses rendimentos justamente porque a manutenção de bens garantidores (com os respectivos ganhos) é uma obrigação legal incontornável. Segundo a Receita Federal, as sociedades seguradoras necessariamente são detentoras de reservas técnicas e percebem os respectivos rendimentos: logo, estaríamos diante de uma atividade inerente às práticas empresariais dessas empresas. Já para os contribuintes, a resposta é negativa, e – é curioso – justamente pelo mesmo motivo: na visão das seguradoras, elas são empresas que se dedicam à percepção de prêmios e à administração atuarial de sinistralidades: a constituição das reservas técnicas e seus rendimentos são meras consequências de um dever legal acessório e exterior ao core business das empresas.
A nosso ver, a constituição de reservas técnicas não parece se enquadrar naquilo que é de fato a atividade ou objeto principal das sociedades seguradoras, conforme exige (para haver incidência) o atual art. 12 do Decreto-Lei n. 1.598/77. A missão dessas empresas é a administração e o equilíbrio dos riscos e prêmios dos segurados, e não a alocação e administração de ativos financeiros. O entendimento dos contribuintes é reforçado pela própria e já mencionada regulamentação imposta pelo CNSP, de um lado, e também por entendimentos da própria Receita Federal, de outro lado, a qual em várias ocasiões reconheceu a não incidência do PIS e da COFINS sobre receitas de atividades que não constituem o objeto principal das empresas – por exemplo, as receitas de aluguéis de imóveis de propriedade de uma empresa dedicada à construção civil não integram a base de cálculo das contribuições (v. Solução de Consulta COSIT n. 268/2014) a serem por elas apuradas e pagas.
Note que uma empresa não financeira que seja enquadrada no regime do lucro presumido, e por isso sujeita ao regime cumulativo do PIS/COFINS, quando livremente aplica sobras de recursos no mercado financeiro, não é alcançada pelas contribuições em questão. Isso é ponto pacífico. Em razão de se tratar de uma seguradora, e de com isso haver a aplicação financeira obrigatória – em reservas técnicas – de uma “sobra” , é possível afirmar que essa circunstância altera o panorama e atrai a tributação?
Entendemos que não. As receitas atreladas à atividade principal das seguradoras são os prêmios relativos aos seguros contratados. A subsequente destinação dos prêmios auferidos, ainda que decorra de uma obrigação regulatória, não altera o objeto social principal das seguradoras. As sociedades seguradoras têm como atividade ou objeto principal (e é esse o conceito da Lei n° 9.718/98) a administração de seguros (prêmios x coberturas), por meio de contrato típico previsto no art. 757 do Código Civil. Os frutos decorrentes destas limitadas aplicações em reservas técnicas são outras receitas que não decorrentes da atividade operacional. São rendimentos gerados por terceiros, a quem a seguradora confiou suas reservas, diferentemente dos prêmios de seguro cobrados de sua clientela. Se as seguradoras tivessem como atividade precípua a realização de investimentos, os mesmos não seriam limitados como de fato são.
A aplicação é secundária e com balizas regulatórias, pois visam preservar, ai sim, a atividade fim, e por conta disso parece gerar a confusão a ser revisada no âmbito da Consultoria da Receita Federal e até em precedentes insipientes do Judiciário:
TRIBUTÁRIO. PIS. COFINS. LEI Nº 9.718/98. LEI Nº 12.973/2014. FATURAMENTO. RECEITA BRUTA OPERACIONAL. SEGURADORA. RECEITAS FINANCEIRAS.
(...)
"Para garantia de todas as suas obrigações, as Sociedades Seguradoras constituirão reservas técnicas, fundos especiais e provisões, de conformidade com os critérios fixados pelo CNSP, além das reservas e fundos determinados em leis especiais."
(...)
3 - Cumpre observar que as receitas financeiras provenientes de aplicações ou de reservas técnicas, as quais visam a assegurar o pagamento dos sinistros, resultam de parte dos prêmios captados de seus clientes e investidos no mercado financeiro, guardando, pois, relação estrita com a atividade da apelante e, por conseguinte, integrando o seu faturamento.
(...)
Assim, porquanto decorrem do exercício do objeto social das seguradoras, constituindo receita bruta típica, as receitas financeiras integram o seu faturamento e, consequentemente, a base de cálculo do PIS e da Cofins. 7 - Apelação não provida.
(Processo n. 0016015-33.2015.4.03.6100 – Julgado em 05/04/2017 pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região – São Paulo)
Segundo o que defendemos acima o entendimento da Receita Federal não deve prevalecer. O mesmo se diga da decisão acima que usou premissa de relação da atividade da seguradora com a aplicação em reservas técnicas, quando a lei exige que a receita decorra da atividade principal. O julgado acima merece reforma, na medida em que levado a efeito o mesmo racional, qualquer aplicação financeira de sobras decorrentes do faturamento de uma empresa do lucro presumido seria alcançada pelo PIS/COFINS, afinal tais sobras resultam de uma atividade principal da empresa hipoteticamente considerada.
Conclusão
Entendemos que o PIS e a COFINS não incidem sobre os rendimentos dos ativos garantidores constitutivos das reservas técnicas, cuja formação e manutenção é obrigatória para as sociedades seguradoras. A constituição e a afetação desses ativos, extremamente regulamentados, não se configura como atividade ou objeto principal dessas empresas, o que impossibilita a cobrança dessas contribuições com base no art. 9.718/98 em sua referência ao art. 12 do Decreto-Lei n. 1.598/77 (inciso IV em especial). Antes e após auferir prêmios de seguro, há necessidade de se constituir as reservas, que para não serem corroídas pela inflação são objeto de um rol limitado de aplicações financeiras.
Enquanto essa questão não alcança os Tribunais Superiores, o novelo fiscal-regulatório de que ela faz parte segue em sua longa espera pela espada reformista de Alexandre, a ser desembainhada (ou não) após as Eleições nacionais. No meio disso, o setor brasileiro de seguros se vê obrigado a conviver com mais essa incerteza tributária decorrente de imposições regulatórias – problemas que se retroalimentam. A prevalecer – indevidamente a nosso ver – a tese da incidência do PIS e da COFINS sobre esses rendimentos, a economia nacional se sujeitará indefinidamente a uma oneração importante que recai sobre um setor estratégico, com desestímulo aos investimentos e com repercussão sobre o próprio público segurado.